★ Flávio Souza Cruz ★

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quinta-feira, agosto 25, 2005

Maria do Rosário esquentava o café. Ao lado, o esfumacento tardar das horas. Estevão sentado. A boca entremeada por ausências contava a Estevão sobre a menina de João Trant, vizinho próximo. Estevão pensava, olhos em fuligem e lembranças em pauta. E então um silêncio, uma pausa, cinco segundos entre o pular da agulha do disco em causa. A mão toca o cimento rachado da antiga cor em vinho do fogão. O calor toca a pele, toca as veias, entorpece o corpo. O estômago lhe dói. Estevão limpa o arremedo amarelo do olhar, coça-lhe as vistas. Um suor frio lhe cobre enquanto um branco luar lhe entorpece o rumo. Balança, tremula, se assegura na cadeira. E então, naquela paradeira desgraçada de paradeira e imbróglio, Estevão lhe sai. Ergue o corpo em trinta graus, se apruma. Vê Rosário lá de cima, se arvora. Quer chorar, quer gritar mas o silêncio é tão fundo que passa a escutar com as narinas. Sim, ele ainda cheira, morto não está. Rosário vai coando o café, sua boca a ensaiar mais um causo. Estevão lhe ergue as mãos, a Rosário busca, mas seu corpo quica como um velho balão. Ele reconhece o som de preces e o som de choro. Um menino lhe aparece. A foto quasi-marrom pregada no canto esquerdo, entrecortada pelo vidro. Seu corpo gira duzentos e setenta graus, seguro pela aresta de madeira. A foto de Etevaldo, o irmão perdido, a roupa escolar. Novamente as lágrimas presas à entranha. Não lhe escapa o sentir, enxarca-o. Se ajunta à parede, se encolhe em abraço, se aperta à foto. Toca-a num sentindo incenso de fumaça. Sente-lhe o cheiro enlameado às margens do córguin. Etevaldo lhe acena, o olhar de tristeza se fecha buscando um sorriso de adeus. E assim tudo lhe viu, de dedos cravados, como o irmão se lhe pedisse a Deus.

Rosário se dobra a seus pés, a mão lhe aperta e grita "Estevão! Estevão! homi! Estevão! Não!". Mas o velho Estevão assombrado aos doze, homem das preces, cruz em punho, não volta mais. De olhar aberto ficou.

terça-feira, maio 31, 2005

Culturanças são... culturanças são lembranças embuídas em pó, desterro e traças. É o pavio culto, largado, dos sertões de dentro, aqueles rodeados em nó. Sonhamento é estranheza turva, é moleza d'olhos de algaravia só. Pertença, pertença em tronças, em caichos d'álho ao Mato Dentro. Mato afora, Cerqueira Maria, escriturária em Jati, corria como louca. Culturança era pouco, seu corpo era tépido. A moça corria de pés em vento, de trouxa nas costas. O mato farfalha, as contas balançam, a tesoura cai. Cerqueira tropeça, a trouxa ao chão, volta. Retoma a tesoura e o fio, a picada e estrada. Seu rosto balouça, vai em câmera lenta pulsando dos lados. A garganta queima, seca, retorce. "Ahh Maria das Cercas, que tu fizestes à cabrinha?" E ela corre, corre, corre... corre, corre, corre mato adentro... corre num engalfo de sede e fome... Maria e a cerca, o pulo e a morte. Ela corre da casa, corre do homi, corre de si, espelho da carne, culpada de tudo, descarte da sorte... corre, corre, corre Maria das Cercas... corre, corre, corre... pra vinte anos passar, pra vinte anos morrer, pro vigésimo ano, tempo de agora, ser culturança do tempo, crimonosa em pó, um resíduo das traças.

Trabalha hoje, na Rodrigues Souza, em amplo elevador, Maria das Cercas. Às vezes se lembra, da tesoura e a ponta, no apertar da subida, um cabelo em tranças.

sexta-feira, março 11, 2005

O vazio é sempre um querer. Ele pulsa como almofada a se contrair. Revolve o estômago, aperta o átrio. Sobe visceral, remexendo a fronte em ânsia. Melancolia nos olhos, ânsia de palavras. Maria do Rosário cansou-se dos vazios. No movimento dos anos, em arrebitar de querência, Maria se enfiava de paixão. De paixão se enfiava pra num rasgar lhe tirarem. De fé se enfiava pra num roubar lhe tirarem. Batia o pé, teimava. De trabalho se enfiava pra num chutar lhe tirarem. Maria sentia o time, outra e paixão. Mas este, quando muito, era uma rapidinha no poste. Maquiava-se, vestia-se, metia-se. Seu rosto quase belo, coisa de atriz aos 50. Um olhar noturno, uma pálpebra fechada. Duas.

A porta se abre erguendo a pupila. O estômago a envolve, vazio. Tempo da conta do rosário. Hora de enfiar mais um dia.

quarta-feira, março 09, 2005

Escutei lá pelas bandas do sul, da boca de um velho escritor, uma lenda sobre as mulheres. Conta a estória que elas, em verdade, são seres divinos, são anjos aqui na terra. Do conto à verdade, para sabermos da estória, num maior tanto, é preciso que nos salvemos do encantamento.

Miguel chegara em casa e ainda era cedo. Reclamava do dia, reclamava das horas, reclamava dos pães à mesma. Na grosseria das mãos e força nos braços seu corpo, da camisa azul ao sapato negro, um acalmar foi se dando. A mulher lhe trouxe a bebida dizendo "quieta teu corpo ao meu, bebe teu perfumado vinho." E ele dizendo "eu te quero, mas recuso o afeto." Ela sorrindo e se jogando corpo e alma, como se do nada os pudesse separar. E do seio a boca em lábios, as mãos em dedos fez um todo quase nó emaranhado. Morderam-se. Comeram-se, amaram-se. Ela em tudo, ele em partes. E lamberam-se, cravaram-se, amaram-se. E ele dizia "vem"; e ela dizendo "mais"; e ela dizendo "aqui" e ele dizendo "mais"... E no arrumo dos corpos em derrame se deu em caldo a profusão de Miguel, urdido em grito de exaustão. A nem tão linda, mulher deitada, embaixo, o arfar feito narina e estorpor. Respiram, arfam. Miguel fecha os olhos. Uma asa penetra a cama. Apruma, corta o véu. Abre-se, velada, lânguida asa. Voa. E ao fundo, sente-se o cheiro de um café com broas, um resquício da tarde.

Os olhos entreabertos, a sombra nas pálbebras, a luz e agora sombra. Um vulto, uma asa. Miguel ao lado, e a mulher do outro. Ele a olha e jura ser ela um anjo. E por fé, agora sentado, lençol arreado, Miguel a vê - costas abertas, pedaço de carne, pedaço de gente, pedaço de asa.

Acorda, as mãos na cama. Volteia a cabeça e diz: "Isaura, sonhei que tinha me esquecido de uma coisa muito importante. E eu queria... eu queria te dizer..."
Mas o encatamento trava seus lábios, no abraço de Isaura, no aconchego dos dias. E os anjos, escondidos na escada, bocas em dó, em prece arfaram - amém.

terça-feira, março 08, 2005

A lágrima é uma gota de humor, um pingo. Ornamento prateado com que bordam os panos de dó, um tudo-nada, um tudo-ter em lágrimas na voz. "Laurinda, deixo-te a menina. Vou-me. Tu sabes. Nada acrescento mais. Teu pai em carne seca me quer. Parto. Me deixo para trás em teus braços. Me continuo nela, me pertenço em ti. Minto. Que meu desejo é morte. É Pedro quem deve te cuidar. É Pedro o homem da tua vida. Vou-me, Laurinda. Me perderei no Rio, covarde que sou. Teu peda..." O papel amassado, meio queimado, meio pedaço... a mão apertada. O olhar agudo e a dor estampada em íris azul. A menina chorava. O corpo ardendo, os olhos fechando. A criança cheirava e a lágrima escorria, boca seca de dor. Panos em dobra e ornamentos em prata. "A casa, a fazenda, o campo queimado." Queimada ardia.

Laurinda olha para o lado. A tia Isadora, Julinha nos braços. Um quarto as separa. Um grito, um respiro. Mais nada. Dorme, o corpo queimado.

E mal sabia José e também agora Pedro que o amor fora cama, e que a tez, agora chama, fora a loucura de uma perda. Em prece, oraram. A tia, Pedro e Julinha no colo.
Hoje está viva, a casa se foi, a pele um pedaço, e o amor, aquele em chama, também.
A lágrima é um pingo com que se bordam os panos de dó.

quinta-feira, março 03, 2005

Na beirada do laranjal moram cheiros do passado dos meus passos. Na beirada do laranjal mora o balanço do meu sorriso. E lá bem fundo, na beirada do laranjal, mora o rio do meu sonho. Lá, bem antes, bem cedo, bem viva eu corria, longe, caminhando nos cheiros, nas folhas do laranjal.


Ela cheirava folhas e sentia peles. Ela cheirava a pele e a sentia folha. Trocava cheiros por lembranças, odores por palavras. E na gramática diária, recitava versos para a rainha da noite. Embalava pétalas no colo e escrevia receitas com as lembranças da infância. A queda no chão, seu choro, o pai correndo... Ela embalava o passado com música do dia. Na beira do laranjal, bem sabia, havia um cheiro para trocar palavras. E a cada abrir das narinas lhe entravam sonhos. Na beirada do laranjal, bem sabia, havia odores de irmã-vida e irmão-sol. Contava as amigas e na roda de dança, contava as folhas, caindo aos montes, lhe fazendo princesa. Ela sabia e bem hoje o sabe saber das palavras que se trocavam sempre. Ela pensava "agora", mas na tinta escrita aparecia "acorda". Ela teimava e era "agora", mas sempre "acorda", a terra dizia. Ela escreveu "acorda" e a terra, e o tudo nela, as sementes, e o laranjal, todo o cheiro, todo o ar se perderam no antigo e sempre. Ela largou o reviver e num aprumo de vida revolveu em viver. Ela era um sopro em cheiro e ficou assim, caminhada, bem parada. Era a mão nos lábios e olhar pra gente. Um sorriso nos lábios e o dedo na boca. Olhar em tudo pra se dizer casta. Ela largou dos laços e nos largou por lá... nos cheirando o ar na busca do que se passou ali, querendo saber, bem cedo... onde mora ela, "a verdade" das folhas, a voz do laranjal.

sexta-feira, fevereiro 25, 2005

As mãos colocadas nos olhos, a terra escorrendo pelos olhos. Jogado ao chão, Estevão Ferreira Rosemberger orava. O cabelo dançava em mechas de suor. Sangue escorria em caldo de fome. Treze minutos antes sua vida em semi-círculo correto, austero e puro. Mirava a noite sol das cinco e insuflava ventos. Maria do Rosário, a esposa, olhar calmo. O livro na mesa, a abertura no salmo. O café no primeiro gole se ardia junto à água matinal. A benção, lhe pediam - e a todos um verso dedicava. Era terça e seus olhos amarelentos se fechavam na poeira da estrada. Então Estevão finalmente viu - o vértice vento próprio esgoelando de dor e protesto, serpenteando na estrada a rugir na fúria das pedras jogadas. Morte e envelhecer lhe travaram as juntas. Era o mato, tornado rubro, tornado sangue, espetado pelo vento. Redimunho, rede-mundo lhe falando em pedaços. "Vem, meu irmão - toma-me, enlaça-me". E o descunjuro do todo o assustrar e abrir de olhos e mais, nunca vira coisa igual. Do paletó, puxa o terço, do suor repuxa a garganta. "Vem, meu filhim, volta pra nóis", a voz no vento-folha regia um choro de criança-morta. E a treva então lhe fecha o rumo. Aponta o rasgo de luz e ao chão de joelhos cai. Chora, remexe, crava as unhas e grita. "Senhor! Livra-me! Vade-retro-coisa-ruim!". E o ritmo farfalha e assombra. E canta. E rói. E dança. E cospe. E quer. E grita. E canta. E roda. E mais. É tudo caldeirão de fogo. E rosas lhe caem. Secas como a boca, amarelas como a pó. Arqueja, arpeia o salto. Volta e amanhece. A boca é velha, o caldo é rubro. Rosário a seu lado. Soluça, chora. E sua mão é sangue. O lençol branco, a janela e o paiol. Nada havia. Fora susto.

Mas o mato ao fundo, na soleira do vento, era mato, tornado rubro, tornado sangue, espetado ao alento.

quinta-feira, junho 12, 2003

Um dia, fim de tarde num estiramento de nuvens vermelhas, José Arcanjo dos Santos abre seus braços no alto da pedra. Seu gesto-espantalho é girado num encantamento proseado em si mesmo. "Nazinha, meu querer, do meio de ti o azulão voei, e por tua boca morreu. Deixo faca, foice e fel, derramo os braço por nosso senhor qui dipressa vem cum força e fé o nosso rumo já é dado. Que de mim reste o pó das colheita e o milho seja bom. Fico aqui, leite e mel querer, sozinho me vou ao pai todo poderoso agora e sempre." Arvoado, José Arcanjo assopra o ar, buscando um assovio sagrado. O rosto cor de terra erodida retorce a boca em gestos ossados enquanto os galhos vermelhos untam seus olhos de sangue em fundo amarelo. "Ôoohhh", diz a voz-vento de José, um rever-verbo ecoado. A mão estendida recebe agora o primeiro pássaro, tomando-o em ninho. Ao alto a revoada se achega num periricar inaudito. Dois, três, quinze, mil pássaros azuis arrevoam o céu num aniz bailado. Coração em pulso largo, José cantoria com eles ainda estátua. "Quizera bom meu rumo certim, esperar te vou buscar meu nim", mais um verso na ajuntação. O volteio mais largo no rumo da pedra agora é uma cruz em dobra voada por ninho. Círculo de vida em pruma espera, o Arcanjo ergue seu vôo, enevoado por asas e Santos, sobrenome José, agora é uma mão sem pássaro, que da asa agarrada em mãos, deixou a vida roubada se ir. Desce da pedra cagada de penas, volta a Nazinha, seu bem-querer, espirrar rapé pros azulão voá!

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