★ Flávio Souza Cruz ★

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quinta-feira, maio 07, 2009

Existe um Flávio, uma Maria, um Rosalvo e uma Mercês que habitam em outros cantos e mares que não este — o conhecido. Existe um eu, menino escondido em meio a um barril, que amontoa causos e estórias para contar. Existe um eu, mais velho e barbudo, próximo à eternidade, destemido pelos xadrezes com a morte, disposto a contar a estória de suas estórias.

Maria se escondia abaixo das flores, cantando versos em latim. Seu cachorro, sabidamente entendia tudo. Rosalvo, menino de sardas, roubava goiabas de seu vizinho gigante barbudo. Seu sonho era ter uma banca de jornais. Já Maria era mil aprontações — rasgava panos e costurava vestidos para suas bonecas. Ao crescer, esquecida, tropeçou em uma delas. O bracinho, coitado, partira-se. E Mariazinha, agora Maria ficou a se olhar no espelho.

"Não mudamos, apenas nos escondemos...", refletiu ela. A maturidade é um esconder-se da criança que há em nós. Rolar pedras, brincar de gigantes, rodopiar em bailes de príncipes... Ter medo e se esconder do bicho que mora abaixo da cama, contar as tardes na espera das fábulas da noite... Todo este mundo nos espreita com cara intrigada e risonha.

E pensar que alguns morrem antes da coragem chuta-balde da velhice, da época em que não temos nada mais a temer a não ser o próximo movimento da enxadrista morte. Interrompidos no tempo, deslocados por um "sem-saber-porquê". Há, por certo, uma razão-mistério na demiurgia regressa de nossos eus. Talvez, caiba a apenas alguns o testemunho das priscas eras, o desvelar desavergonhado de nossos medos e aventuras recônditos.

Um quê anglo-saxônico de dragões e bichos estranhos habita minha alma tolkiniana misturado às endinheiradas aventuras do velho Patinhas. E nisso me bate a saudade das fortalezas e aviões de outrora, carrinhos Matchbox e seriados japoneses. Eu habitava em um mundo estranho, vizinho dos mundos estranhos de Maria, Rosalvo e Mercês.

E nisso me encontro agora, reconstruindo minhas eternas cabanas na mata, a me proteger da chuva. Na rua, lá fora, as gotas caem... e os carros buzinam!



quinta-feira, janeiro 31, 2008

A angústia sempre foi minha parteira. Nunca a amei e em nada desejada esteve em meu fazer. Não a culpo, não me culpo, não a exconjuro. Aprendi nos arfares e soluços a respeitar as contingências da dor. Sempre quis escrever diários felizes e só buscava tais páginas nos anversos da felicidade. Tive sempre em cada página a sensação de lidar com magia. Eu em tudo mastigo o mundo, comendo pessoas, bichos e folhas. Cada pedaço da minha pele, cada centímetro de meus orgãos é um papel tingido de mundo. E por tal devia me considerar em ares de um pesar mundano. Mas os dias me trazem uma querência sôfrega de esperar pelos ventos de um tempo além. E em luta com o acordar diário, vou parindo querências. Levanto, não olho a janela, não vejo o trânsito. Não vejo a tabacaria e nem a árvore que engole meu céu. Meus olhos custam a se entender com a luz. Minha vida prossegue, tal como um chapéu aberto à chuva. Promessas de sol, promessas de esmero. Um passo a mais e o espelho está aberto. Me sento e ali converso, trocando sorrisos e olhares com os estranhos da grande avenida.

Da estranheza da noite, a pergunta amiga me fala sobre carícias e estranhos. Paro e pouco tenho a dizer. E neste nada, habitual da preferida omissão, descubro a angústia dos meus versos. A estranha e delicada arte de hesitar, efeito vago entre os nós do mundo. Às vezes, regurgito.

segunda-feira, abril 10, 2006

Eu vivo na cidade ao lado onde mora o esquecimento de mim.

terça-feira, agosto 16, 2005

A cidade dos meus dias


A cidade dos meus dias é a cidade da árvore. A cidade da minha árvore é cela de meus sonhos. Verde-musgo entrecortado no cinza, espero o crepitar do horizonte. Chuvas de luzes caem mim amantegando-me em seda. E é assim, enevoado em seda o meu belo horizonte dos dias da noite. É nela que vivo - nas sombras do sonho. Mastigo as imperfeições gratas do dia ao sabor do levedo em bock. Abro jornais, abro páginas, links, abro caras. Minha relação é de sequestrado perpétuo, destes que se apegam ao claustro. A cidade das minhas pedras é a árvore dos meus dias. Desdenho dos cantos e hinos da pátria Atena. Meu canto é apenas de aconchego e prazer feliz. Não traço a tradição, não conto os ladrões de sonhos, não me recordo das vãs descrições. Minha cidade é apenas minha, como a dor, de mais ninguém. A cidade, minha árvore, meu canto, perdão. O horizonte, cálido, me esconde e salva. Me abre, me abraça, acolhe e fecha. A cidade de minha alma é um abraço de mil perdões.

Morro em paz, em jazigo de estrelas. E nem sei se vinha ao caso o cantar da morte. Mas a cidade da minha árvore é o ocaso de meus dias.

segunda-feira, maio 23, 2005

Dizem que uma estória é boa quando se coloca carne e fé, sol e trevas nela. E que da carne há de escorrer fé e do sol um pique-esconde nas trevas. Me diziam, repito, que devo fazer minhas Marias, Carlos, Rodrigues e Armínias com o lodo quente das palavras que se carregam a dedo. Criar círculos nas terras longíncuas e enfeitá-los de dramas e prosaismos de ruelas. Mas em tudo, nos últimos segundos, não tenho visto a vida no deserto estrelado da noite. Reparo, quero dizer - parca é a vida naqueles céus dos corações de pedra. Um tanto quanto, pode ser em Bento Garcia, em Olivério Carneiro, ou no sertão de Jequitá, mas sempre, e somente sempre naqueles céus de Maria Luisa. Certo dia, ela me disse, contando em segredo - "Ernesto, a amizade verdadeira é como uma estrela..." E eu, absorto em Alpha Centauri tentava entender. Sentia a luz, sentia o blues, mas nada flaming, tão certo e quente como a velada amizade. Eu olhava a noite e um rosto longínquo, faraway era tudo. Eu pensava, retorcendo a barba "Mas como entender as estrelas se o nosso céu é manto negro de cidade grande?" Nasci em pedra, nasci em neón, nossas estrelas são postes desencarnados. E Maria Luisa sorria. Era um sorriso manso, maroto, escondido entre lábios. E eu ficava lá, pensando com a vida, lutando com os rompantes de estrela. Numa bela noite, me imaginei deitado ao penhasco, me untei de carne e fé e olhei para as trevas. E lá, bem longe, neón calado, no prepúcio do mundo eu senti.

terça-feira, maio 03, 2005

Eu sou um vazio à cata de um minuto. Espero, soluço, sei.
E por certo seria melhor me apresentar com nomes.
Mas minha vida é rótulo aberto, dobrado, jogado ao mar.

Eu sou um vazio à cata de um vendaval. Incerto, sozinho, sei.
E por certo seria melhor não me enfeitar de nomes.
Mas minha vida é uma oração, caída, prostrada ao mar.

Eu sou a mão quente que ajeita a vela. Inquieta, sofrida, sei.
E por certo seria melhor me esconder dos nomes.
Mas minha vida é a fé batendo na pedra, dobrada ao mar.

Eu sou o vendaval que te espera. Incerto, sofrido, sei.
E por certo seria melhor esquecer meus nomes.
Mas minha vida é me fazer pedra, à espreita, no meio do mar.

sexta-feira, março 18, 2005

Naquela página do dia que é minha memória está assim escrito....não farás!
Mas naquela ânsia do dia em que se foi minha vida me fiz assim por ela,
um assim esquecer. E tudo foi como um rasgo no tempo... e nada além.

quarta-feira, março 16, 2005

Esperando a outra brevidade sair do serviço de parto

terça-feira, março 15, 2005

Quem pudera trazer do tremular do parado ar o escaldar da movediça curva em calor. A mão espalmada tocando o pescoço melada em suor. O dorso esguelando e contorcendo o tempo, efeito vago. A pele arde, queima e morre em gotículas. O olhar bem aberto vendo o tempo e aquilo, aquilo era tão... tão doce... os olhos do menino, na beira da estrada. O olhar, sorrindo, voltado pra terra, para as mãos em terra. Os carros passam, desenhando espectros no calor. O suor pregando a roupa e o calção pregando o corpo. O dobrar das mãos arrastado no minuto a rodopiar o graveto. O dobrar do graveto rodopiando o mundo e tudo, bem tudo, bem lento, bem santo e lento. A criança era eu e o tempo era Deus. O buraco desenhado, o graveto, a torre de lama seca, a formiga. Quem pudera me trazer de novo no tremular do parado tempo. E a movediça curva do amor, me resgatar dos prazeres de mim mesmo. Quem me dera resgatar o graveto, a torre e as formigas e me perdoar pelos dias enfurnados em buraco. Eu seria um menino numa tarde sábado, uma criança num dia de sol, tão somente um menino tremulando ao som do calor.

E tudo, tudo pulsava tão forte... E dizia o menino a mim mesmo "eu vou morrer assim... em partos sucessivos"

quarta-feira, fevereiro 23, 2005

Eu sou o acaso de meus encontros, a pista de meus erros, o engano de meus propósitos. No mais, entre um ponto, um termo e outro... sonho.

segunda-feira, abril 21, 2003

Formando um quadrado, quatro banheiros de laje antiga branca, portas de madeira dessas que não chegam até o chão e uma descarga para ser puxada. E quando a usávamos, algo bem diferente acontecia pois de banheiro aquele quadro não tinha nada e era de fato um elevador. Subíamos uns 8 andares naquele prédio dos anos 40. Ao chegar, logo uma cortina de veludo azul nos recepcionava. Dava para escutar a música transpassando o pano de cortina e logo já se viam as pessoas junto à entrada. Era uma mistura de bordel com clube de dança. "Olá Flávio, entra, entra, pega uma cadeira...", uma mulher me recepcionava. E ficava ali a ver as coisas acontecerem. Poucos dançavam, mas havia muita conversa - intrigas, futricas, jogos de corpo e imagem pelo salão. Ao fundo, havia sim dessa vez um banheiro de verdade onde as tais intrigas e negociações continuavam seu ritmo. Me lembro de ser um frequentador semanal deste lugar, me lembro de ser conhecido por uma boa parte das pessoas mas me lembro também de ter sempre a sensação que eu era um estranho e que precisava ainda me apresentar a quem ali estava. Gente do colégio, do grupo de jovens, dos amigos das noitadas e gente nova que conhecia os meus amigos e não a mim...ah havia os meus primos também. Em meio a isso tudo uma doença começa a tomar meu corpo. Vou ficando cada vez mais fraco entre idas ao médico, retorno ao clube e visitas ao hospital. Eu não sei do que se trata, mas sinto que é algo que me enfraquece pelas entranhas. Vejo os olhos de tristeza e de esperança das pessoas, olhos dos que sabem o olhos de interesse daqueles que não sabem.

Num determinado dia, em visita ao médico, vi um auxiliar dele entrar com um aparelho estranho parecendo uma régua com uma curvatura abaixo. Me abrem a boca com o tal aparelho e observam lá dentro. Sou levado ao hospital, que era logo ao lado. Lembro que isso era já previsto - a tristeza das pessoas no clube, cada uma no seu canto e jeito, me dizendo palavras e me oferecendo o ombro numa mistura de carinho e espantamento. Lembro-me da palavra "novocaína" e um sujeito que reagia a ela, ficando "doido" querendo pular do caminhão onde imaginava estar. A sensação de ser cortado e de me ver marcado ao longo de possíveis outras cirurgias pela vida e de sempre querer voltar para casa há poucos quarteirões e sempre me ver impedido. Eu senti tudo acontecer apesar de não ver. Ainda enfaixado, de terno marrom e chapéu na cabeça vou me aprontando como um velho aposentado. A dor é daquelas que na verdade são de um "não se encaixar" no corpo. Me apronto todo e agora estou lá novamente abrindo a portinha do banheiro de baixo. Subo, abro a cortina, entro no salão. Poucos me reconhecem, me vêem como um velho ao longe. Me lembro de três mulheres num grupo afirmarem - "mas... mas parece um velho!" e consternadas abaixarem a cabeça. Me encho de raiva e mesmo sentindo as faixas apertarem a região da cirurgia, corro e deslizo pelo salão. Levanto o chapéu e como se uma nuvem sumisse da visão das pessoas, retomo minha imagem original jovem e cheia de vida. A alegria retoma. Nos braços, tomo uma daquelas três mulheres para dançar o bolero da vez... e escuto ao fundo, no banheiro de cima, a velha quermece das intrigas de sempre... mas vá lá... acordei... este foi o meu sonho da madrugada.

domingo, março 30, 2003

"Quem não lê, não escreve." Certamente este é o começo de tudo, a base para um escritor, mas às vezes também há na trajetória solitária deste ser uma necessidade de não-leitura, uma necessidade de entrar numa certa virgindade literária para daí, do nada, poder criar. Impossível, certamente, pois cada autor que lemos marca com faca, machado ou parafuso uma parte de nosso interior. No entanto, como eu vi num seriado classe B ontem, estamos neste mundo, antes de tudo, para tentar. No meu caso, há uma vontade de me ler de novo, de ler os sentidos que escrevi, de revisitar uma galáxia perdida em que as coisas faziam sentido. Quero resgatar a virgindade de me alegrar com as coisas que ascendiam os olhos na minha solidão de construtor de mundos. Em bom termo, reencontrar um sentido gostoso nas coisas que o tempo transformou em coisas, apenas.

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