★ Flávio Souza Cruz ★

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segunda-feira, setembro 19, 2005

No andar dos ponteiros

"Enquanto eu sei, das horas que passei, me perdi da vida." disse. "Nas horas, tempos, relógios e maldições mecânicas me joguei" pensou. "Os amigos, não vejo! Quem sabe o Carlos, ah é mesmo, vou visitar..." Mas a mão esmaecida em fraqueza pousava sobre o ventre. Os olhos eram cirrus cumulus, cerrados, mínimos. Pensou não ter a disciplina necessária. Sabia-o, na verdade, não ter. Voltou-se para o pulso e já ali podia medir o influxo respiratório. "Eu podia conversar com ele", pensou alto. Mas a conversa tornara-se magra. Sopa de letras artificiais, carícia sem mágoa. "Eu fui ontem ao shopping!", disse. "Chegou a nossa hora.", escutou. "Te espero na próxima, ok?!" "Semana que vem", respondeu. "Semana, que nunca!", decidiu. Lembrou-se do beijo que este homem lhe dera, ano passado. Não pelo beijo, mas pelo ritual inesperado. Teceram-lhe folhas de esperança, contaram verdades, poucas. O sapato escolhe a escada, passa um rosto, uma jovem. Queria contar para Ana sobre tudo aquilo, o pensado. Cansara-se das palavras da boca, queria-as ditas nos olhos. Abriu a porta, olhou o céu, contou os passos. A rua estava em sol, mas sua alma chovia. Sete gotas de dor, onze gotas de mágoa. Mas as cílios, aqueles do olhar, abortavam o rio. Sorri, um leve repuxar para o lado torto. E sentiu ser destes mistérios sem lógica, o momento da hora. Revolveu sobre a genial criação do esquecimento. Sentiu ainda mais fortes as lembranças. O cílio molhado. Pede um copo d'água. Delicadamente dissolve um óleo para as horas. "Lá pelas oito estarei bem."

Uma criança sorri, corre, abraça-lhe a perna. O olhar abaixo, o sorriso dela. O olhar acima, o céu. "Senhor, obrigado!" O choro, o riso, agora é tudo. Soluços fartos, a cara boa. Sentiu de tal forma um clarão, um insight da tarde: "as horas, Ana... as horas são capazes de saltar..."

quarta-feira, setembro 14, 2005

O Calamundo

A concha é o refúgio do Calamundo. O Caramujo é um bicho assaz conhecido. Já o Calamundo é homem-mulher-bicho. A porta se abre, o bicho sai, corre, arregala os olhos, fecha. Ana Eduarda é o Calamundo da minha estória. Saiu hoje pela manhã. O céu era nublado e até gostava. Não lhe esquentava as vistas, de fato. Por que assim, tudo lhe ardia, até o céu nas vistas era um grito a seus olhos. Saiu calada e meio moída, ressaca da terça. "Ana querida, você já falou com o Celso, hoje?" "Mas o Celso que se dane", pensava ela. Em procissão de velório caminha para a sala, entreolhada. O barulho tá lá, na véspera já doendo. E vai, e entra, escuta, lhe gritam, lhe dói. O Celso era um. A Maria veio depois. Bem sentada, teclado à frente, a mão quase gélida toca o ombro nu. "Aninha, você assistiu o Artaud?" "Mas que inferno é este? Que caralho de Artaud?", range os dentes do estômago. A mão insiste em ficar, uma lágrima lhe esvai, suplicante. A janela está próxima. Sete sons, sete trombetas, sete gritos, sete sirenes. O número sete, perfeito lhe diz que o mundo de lá é um código mal feito. Inspira uma vez e mais um pouco. Respira. Um descanso breve. Telefone. A mãe lhe grita. Esquecera o toucinho, esquecera a banana. Definitivamente este era um dia comum. Pensou em asas de anjos pelo meio da sala. O escritório prossegue, passo mais rápido que o ponteiro. Cinco minutos para uma, cinco minutos se esparramam pelo tempo. Pronto, o almoço é agora. Ana Eduarda desce, a rua, a confusão aflora. O mundo lhe é muito. A esquina é tudo. O mundo é a regra, mas a regra, via dos fatos, grita muito e fala alto. Falta-lhe algo, falta-lhe muito. Ana Eduarda agora é sossego. Mastiga docemente a omelete do Sr. Evaldo. A lanchonete velha, o cafezinho sujo ao lado. Mas abençoada, Eduarda come. Sua concha é o mastigar de ouvidos fechados e nariz atento. Deglutindo calma os gritos das almas, ruminando o mundo. Cala-te mundo.

terça-feira, setembro 13, 2005

Respingos do Querer

Meias rasgadas respingam cinzas, restos. A moça em tom preto chumbo, a pele em claro, túmido vermelho. Eulália, nome reptício, revolve a relva da noite. Sente, a delicada mão, o esmero no toque. Saudade em prosa, animosidade no verbo. Eulália, nome vívido, é toda sangue. Pensa no abraço, mão nos ombros. A janela, uma estrela, um quarto logo abaixo. A cinza caiu, a esperança fumaça. Nove andares abaixo um velho resmunga. O amigo, amante dorme. Traços nóduos marcam o indelével lenço. A perna esfria, a alma revoa. A meia é o quase-envoltório da vida, prelúdio do sexo. "Morre Eulália, mata teu dia!"

O homem acorda às três, nome esquisto, cabeça doendo. Nove andares abaixo, a mulher está quase-nua. Eulália deixou recado, volta amanhã. A vida respinga engasgos do querer. São troços, são meias, verdades, são traços.

quinta-feira, agosto 25, 2005

Maria do Rosário esquentava o café. Ao lado, o esfumacento tardar das horas. Estevão sentado. A boca entremeada por ausências contava a Estevão sobre a menina de João Trant, vizinho próximo. Estevão pensava, olhos em fuligem e lembranças em pauta. E então um silêncio, uma pausa, cinco segundos entre o pular da agulha do disco em causa. A mão toca o cimento rachado da antiga cor em vinho do fogão. O calor toca a pele, toca as veias, entorpece o corpo. O estômago lhe dói. Estevão limpa o arremedo amarelo do olhar, coça-lhe as vistas. Um suor frio lhe cobre enquanto um branco luar lhe entorpece o rumo. Balança, tremula, se assegura na cadeira. E então, naquela paradeira desgraçada de paradeira e imbróglio, Estevão lhe sai. Ergue o corpo em trinta graus, se apruma. Vê Rosário lá de cima, se arvora. Quer chorar, quer gritar mas o silêncio é tão fundo que passa a escutar com as narinas. Sim, ele ainda cheira, morto não está. Rosário vai coando o café, sua boca a ensaiar mais um causo. Estevão lhe ergue as mãos, a Rosário busca, mas seu corpo quica como um velho balão. Ele reconhece o som de preces e o som de choro. Um menino lhe aparece. A foto quasi-marrom pregada no canto esquerdo, entrecortada pelo vidro. Seu corpo gira duzentos e setenta graus, seguro pela aresta de madeira. A foto de Etevaldo, o irmão perdido, a roupa escolar. Novamente as lágrimas presas à entranha. Não lhe escapa o sentir, enxarca-o. Se ajunta à parede, se encolhe em abraço, se aperta à foto. Toca-a num sentindo incenso de fumaça. Sente-lhe o cheiro enlameado às margens do córguin. Etevaldo lhe acena, o olhar de tristeza se fecha buscando um sorriso de adeus. E assim tudo lhe viu, de dedos cravados, como o irmão se lhe pedisse a Deus.

Rosário se dobra a seus pés, a mão lhe aperta e grita "Estevão! Estevão! homi! Estevão! Não!". Mas o velho Estevão assombrado aos doze, homem das preces, cruz em punho, não volta mais. De olhar aberto ficou.

terça-feira, agosto 16, 2005

A cidade dos meus dias


A cidade dos meus dias é a cidade da árvore. A cidade da minha árvore é cela de meus sonhos. Verde-musgo entrecortado no cinza, espero o crepitar do horizonte. Chuvas de luzes caem mim amantegando-me em seda. E é assim, enevoado em seda o meu belo horizonte dos dias da noite. É nela que vivo - nas sombras do sonho. Mastigo as imperfeições gratas do dia ao sabor do levedo em bock. Abro jornais, abro páginas, links, abro caras. Minha relação é de sequestrado perpétuo, destes que se apegam ao claustro. A cidade das minhas pedras é a árvore dos meus dias. Desdenho dos cantos e hinos da pátria Atena. Meu canto é apenas de aconchego e prazer feliz. Não traço a tradição, não conto os ladrões de sonhos, não me recordo das vãs descrições. Minha cidade é apenas minha, como a dor, de mais ninguém. A cidade, minha árvore, meu canto, perdão. O horizonte, cálido, me esconde e salva. Me abre, me abraça, acolhe e fecha. A cidade de minha alma é um abraço de mil perdões.

Morro em paz, em jazigo de estrelas. E nem sei se vinha ao caso o cantar da morte. Mas a cidade da minha árvore é o ocaso de meus dias.

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