★ Flávio Souza Cruz ★

quarta-feira, setembro 14, 2005

O Calamundo

A concha é o refúgio do Calamundo. O Caramujo é um bicho assaz conhecido. Já o Calamundo é homem-mulher-bicho. A porta se abre, o bicho sai, corre, arregala os olhos, fecha. Ana Eduarda é o Calamundo da minha estória. Saiu hoje pela manhã. O céu era nublado e até gostava. Não lhe esquentava as vistas, de fato. Por que assim, tudo lhe ardia, até o céu nas vistas era um grito a seus olhos. Saiu calada e meio moída, ressaca da terça. "Ana querida, você já falou com o Celso, hoje?" "Mas o Celso que se dane", pensava ela. Em procissão de velório caminha para a sala, entreolhada. O barulho tá lá, na véspera já doendo. E vai, e entra, escuta, lhe gritam, lhe dói. O Celso era um. A Maria veio depois. Bem sentada, teclado à frente, a mão quase gélida toca o ombro nu. "Aninha, você assistiu o Artaud?" "Mas que inferno é este? Que caralho de Artaud?", range os dentes do estômago. A mão insiste em ficar, uma lágrima lhe esvai, suplicante. A janela está próxima. Sete sons, sete trombetas, sete gritos, sete sirenes. O número sete, perfeito lhe diz que o mundo de lá é um código mal feito. Inspira uma vez e mais um pouco. Respira. Um descanso breve. Telefone. A mãe lhe grita. Esquecera o toucinho, esquecera a banana. Definitivamente este era um dia comum. Pensou em asas de anjos pelo meio da sala. O escritório prossegue, passo mais rápido que o ponteiro. Cinco minutos para uma, cinco minutos se esparramam pelo tempo. Pronto, o almoço é agora. Ana Eduarda desce, a rua, a confusão aflora. O mundo lhe é muito. A esquina é tudo. O mundo é a regra, mas a regra, via dos fatos, grita muito e fala alto. Falta-lhe algo, falta-lhe muito. Ana Eduarda agora é sossego. Mastiga docemente a omelete do Sr. Evaldo. A lanchonete velha, o cafezinho sujo ao lado. Mas abençoada, Eduarda come. Sua concha é o mastigar de ouvidos fechados e nariz atento. Deglutindo calma os gritos das almas, ruminando o mundo. Cala-te mundo.

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