★ Flávio Souza Cruz ★

★ D R E A M S ★

★ M A G I C ★

★ F A N T A S Y ★

quinta-feira, março 10, 2005

O dedo, anular, procurando o centro da mão. A mão, quase-aberta, procurando o centro da força. A força, meio fraca, procurando o eixo do corpo. O corpo, meio velho, procurando o prumo da alma. A alma, absorta, procurando uma roupa teatral. A roupa, meio tosca, procurando a mão pra lhe sentir. A mão, quase fechada, baixando a calça num despir. O corpo, quase nu, procurando um colo para deitar. O colo, penitente, procurando palavras pra contar. A palavra, agora quente, procurando a ânsia pra tocar. A ânsia, bem tocada, procurando a alma pra voar. A alma, já latente, procurando a outra pra tocar. A outra, já presente, procurando o dedo anular. O dedo, lábio e dente, procurando pêlos a plainar. O pelo, eriçada a mente, procurando o corpo a pousar. O corpo, molhado e jovem, encontradando prumos a sentar. O prumo, rodadando o eixo, encontrando a força toda aberta. Aberta, toda ela, olhar e dente, encontrando o dedo anular.

quarta-feira, março 09, 2005

Escutei lá pelas bandas do sul, da boca de um velho escritor, uma lenda sobre as mulheres. Conta a estória que elas, em verdade, são seres divinos, são anjos aqui na terra. Do conto à verdade, para sabermos da estória, num maior tanto, é preciso que nos salvemos do encantamento.

Miguel chegara em casa e ainda era cedo. Reclamava do dia, reclamava das horas, reclamava dos pães à mesma. Na grosseria das mãos e força nos braços seu corpo, da camisa azul ao sapato negro, um acalmar foi se dando. A mulher lhe trouxe a bebida dizendo "quieta teu corpo ao meu, bebe teu perfumado vinho." E ele dizendo "eu te quero, mas recuso o afeto." Ela sorrindo e se jogando corpo e alma, como se do nada os pudesse separar. E do seio a boca em lábios, as mãos em dedos fez um todo quase nó emaranhado. Morderam-se. Comeram-se, amaram-se. Ela em tudo, ele em partes. E lamberam-se, cravaram-se, amaram-se. E ele dizia "vem"; e ela dizendo "mais"; e ela dizendo "aqui" e ele dizendo "mais"... E no arrumo dos corpos em derrame se deu em caldo a profusão de Miguel, urdido em grito de exaustão. A nem tão linda, mulher deitada, embaixo, o arfar feito narina e estorpor. Respiram, arfam. Miguel fecha os olhos. Uma asa penetra a cama. Apruma, corta o véu. Abre-se, velada, lânguida asa. Voa. E ao fundo, sente-se o cheiro de um café com broas, um resquício da tarde.

Os olhos entreabertos, a sombra nas pálbebras, a luz e agora sombra. Um vulto, uma asa. Miguel ao lado, e a mulher do outro. Ele a olha e jura ser ela um anjo. E por fé, agora sentado, lençol arreado, Miguel a vê - costas abertas, pedaço de carne, pedaço de gente, pedaço de asa.

Acorda, as mãos na cama. Volteia a cabeça e diz: "Isaura, sonhei que tinha me esquecido de uma coisa muito importante. E eu queria... eu queria te dizer..."
Mas o encatamento trava seus lábios, no abraço de Isaura, no aconchego dos dias. E os anjos, escondidos na escada, bocas em dó, em prece arfaram - amém.

terça-feira, março 08, 2005

Anúncio & Chamado - quero anunciar a vocês, meus leitores, que estamos participando de um processo. Parte dos posts colocados aqui no Epifania serão transformados no ano que vem no meu primeiro livro chamado O Livro dos Milagres. A outra parte, eu a estou escrevendo em algum lugar, por aí, não aqui. Afinal, devo ter algo novo a vos oferecer nas páginas impressas, não é mesmo? O fato é que, em verdade, estamos num mesmo barco rumando a este livro. Epifania, meu outro projeto literário continua vivo, mas será adiado para a execução deste livro dos milagres. Espero contar com a ajuda de todos vocês que aqui frequentam, principalmente criticando meus textos. Eles não estão prontos. Alguns podem e serão até em muito mudados. Por isso, conto com vocês! Não tenham papas na língua. Se não gostarem, se gostarem, se gostarem de partes, se acharem defeitos ou tiverem dúvidas, por favor, escrevam nos comments! Hasta Pronto!
A lágrima é uma gota de humor, um pingo. Ornamento prateado com que bordam os panos de dó, um tudo-nada, um tudo-ter em lágrimas na voz. "Laurinda, deixo-te a menina. Vou-me. Tu sabes. Nada acrescento mais. Teu pai em carne seca me quer. Parto. Me deixo para trás em teus braços. Me continuo nela, me pertenço em ti. Minto. Que meu desejo é morte. É Pedro quem deve te cuidar. É Pedro o homem da tua vida. Vou-me, Laurinda. Me perderei no Rio, covarde que sou. Teu peda..." O papel amassado, meio queimado, meio pedaço... a mão apertada. O olhar agudo e a dor estampada em íris azul. A menina chorava. O corpo ardendo, os olhos fechando. A criança cheirava e a lágrima escorria, boca seca de dor. Panos em dobra e ornamentos em prata. "A casa, a fazenda, o campo queimado." Queimada ardia.

Laurinda olha para o lado. A tia Isadora, Julinha nos braços. Um quarto as separa. Um grito, um respiro. Mais nada. Dorme, o corpo queimado.

E mal sabia José e também agora Pedro que o amor fora cama, e que a tez, agora chama, fora a loucura de uma perda. Em prece, oraram. A tia, Pedro e Julinha no colo.
Hoje está viva, a casa se foi, a pele um pedaço, e o amor, aquele em chama, também.
A lágrima é um pingo com que se bordam os panos de dó.

segunda-feira, março 07, 2005



No encontro da rua Augusta com a praça do Rosário número cinquenta e dois, Wanyr, passo altivo, se defronta com o Sr. Samuel. Em cordial e afável sorriso os dois levemente abaixam a cabeça. Samuel, inclinado para a esquerda, um gesto ainda com o braço. Se estudam. Wanyr, olhar concêntrico lhe mede olhos, boca e rugas como se o vento lhe dissesse coisas. Desenha na mente o rosto e percorre cada traço. Lhe intriga o Sr. Samuel.
- Bom dia.
- E já quase noite, emenda Wanyr.
- Saindo?
- Chegando.
- Então um abraço.
Wanyr, braço levemente erguido, um ultimo aceno.
Não entendia de fato este Samuel. Sempre o encontrava nos mais diferentes lugares, nos mais diferentes caminhos, nas mais diferentes casas. E nada disso lhe fazia sentido. "E nada faz sentido", pensou alto. O mundo de Wanyr era um quadrilátero quase-perfeito, há de se ressaltar. De fato, Wanyr e o mundo se davam muito bem. Ele se sentia um escolhido e o mundo o retribuía na sua esperada dignidade. Wanyr andava pelos corredores e quartos, pelas ruas e casas, sorriso sempre aberto, levemente esticado para a direita. Esbarrava às vezes nas plantas e no pé, mas era um hábil observador. Adorava e tinha obsessão por quadros, molduras e papéis. Ele media o mundo e media as pessoas. Enquadrava a vida e emoldurava as pessoas. E assim, Wanyr, dia-a-dia escalava papéis. E assim dizia - "aquele é aviador, este, aviário, já aquela, nariz angulado, bancária de balcão". O mundo de Wanyr era belo pois nos quadros a vida era comportada. E assentava à tarde, satisfeito com as vidas emolduradas na parede. E de súbito apareçera Samuel, aquele que a tudo fugia e lhe angustiava. Buscava e buscava molduras e papéis para Samuel, mas em nada este lhes cabia. Pensou nos batistas, pensou nos espíritas, pensou em ateus e até budistas. Nada e ninguém lhe salvava. Foi assim então que Wanyr, parado naquela tarde de domingo, chorou.

E das mãos lhe nasceram folhas. De Wanyr as pernas formadas troncos sangraram os tacos da sala. E a terra misturada ao musgo lhe subiu com os bichos da floresta. As folhas se fecharam e lhe taparam o corpo. E no escuro, agora dentro, Wanyr descobriu que agora, desde sempre e muito antes - ser apenas e não mais, um cara na multidão, um cara cego.

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