Me lembro do início de 93, quando fui a uma casa no bairro de Lourdes para comprar um bichinho. Quando cheguei, vieram correndo bem atabalhoados dois cachorrinhos beagle rolando pelo carpete e mordiscando um ao outro. Achamos um deles o mais bonito e decimos levá-lo. No entanto, a dona dos filhotes nos disse que na verdades só restara o outro para vender, aquele com uma mancha marrom na testa. Me lembro do primeiro dia no qual eu o pus em uma caixa e o deixei aqui no quarto para que pudesse olhá-lo. Me lembro de olhar no jornal e descobrir a pitoresca palavra Tibúrcio e de o "presentear" com esse nome. Me lembro de um ganido misturado a uma certa melancolia e espanto como se assim perguntasse: "Onde estou? Cadê os meus amigos?". Eram seus primeiros dias aqui em casa, ainda se acostumando com o novo ambiente. Me lembro também do primeiro dia em que o levei para passear, de como cravou suas unhas no cimento do passeio, morto de medo de toda aquela confusão que o cercava. Deste dia e dos outros que comigo passeara pela praça da Assembléia, por toda Lourdes e até a Savassi, quando incansavelmente me puxava e puxava, restam coloridas as imagens na memória. De quando o deixamos treinando sozinho, onde fome e mal tratos passou, e de seu retorno, quase salvamento, quando alucinado adentrou percorrendo cada centímetro da casa. Mal humorado ele era e muito safado também. Raptava sapatos e os levava para debaixo da mesa para vigiante e atento só os trocar por um pão de queijo ou biscoito. Era um cão lindo, cheio de vida, que por toda a redondeza fazia sucesso. Todos paravam para vê-lo. O bom e velho Tibe! Aquele que recebia a todos com cortesia, balançando o rabo como que a fazer as honras da casa. E de todos era o primeiro a correr à porta quando nela batiam. Era um bon vivant, todo balofo de tanto comer, negociando e roubando os pratos da casa. Um cara genioso que só fazia na verdade o que bem entendia e queria. Das vezes que o pegava no colo, sempre tentava escapar e só mesmo quando o queria era que vinha até a gente com aquele olhar de querer cafuné. Me lembro de suas alergias, das vezes no veterinário, dos latidos, cada um com seu tom, cada um com seu querer e pedir. Eram palavras, cada uma bem dita e escutada por mim. Andar vagoroso, sempre com um gingado pro lado, procurava sempre por uma árvore na rua, seu local sagrado de deixar a marca. Me lembro destes passos e de dez dias atrás com ele traçar os mesmos passos na Assembléia. Os passos eram lentos, a vista era turva, mas a alegria era a mesma - uma vontade sempre forte de sair e cuidar de suas árvores. Me lembro de na quarta, me deitar ao seu lado e por minutos ficarmos lá como que a comunicar segredos... um contando para o outro, suas dores e vontades. A idade chegara e tudo lhe era mais difícil. Em casa já sabíamos e nos preparávamos para o que estava por vir. E de tudo, aquele porvir necessário que é o contar pra trás das horas, de inesperado nos pegou. O bom e velho amigo, o "velhinho" se foi nessa última quinta. Seu coração parou numa súbita despedida, longe daqui, nas mãos dos médicos, do tempo e de Deus. Sua vida, alegria da casa, esvaiu de nossos dedos num contar de areia.
Me lembro das horas que me fazem lembrar das horas que com ele não estive. Um amigo se foi. E que tudo o mais é luto, qual seja o círculo amarelo que me mostrem. Recolham as flores, parem os sinos, fechem as janelas pois a noite chegou. Que em breve tudo passa e das estórias de acolhimento já as sei todas de cór. São velhas amigas, utensilhos de baú, sempre prontas as tenho num recital como este. Nada há nelas que a um amigo se faça o retorno. O chão é breve e a terra é tão curta pra vontades tão tantas. Lá bem longe, de quando em breve, na "Terra do Au", um latido mal humorado irá brilhar. No mais, na vida ausente, daqui de longe eu vou escutando. Adeus, meu bom amigo...
sábado, novembro 01, 2003
By Flávio Souza on sábado, novembro 01, 2003
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