★ Flávio Souza Cruz ★

quarta-feira, setembro 03, 2003




Naquele soluço do tempo, chamado colo de Deus, lhe contaram ser um filme a projeção daquilo que deveria cumprir logo abaixo. E que não se preocupasse, pois o rolo já estava fechado e a luz na tela íngreme iria guiar, e quase sempre, até mesmo empurrar, seus passos para boa cena na fita poder ser. Lhe deram violino e uma pauta e preocupar apenas com a música, que de resto deveria ser bem colada a tudo que visse e cheirasse. Copiou de pronto já umas boas partituras e no bolso guardou a estória de um tal Mozart, menino precoce que encenara o filme da terça. Fechou bem os olhos e já em pouso acordou virado pra baixo como se o inverso do ar fosse a Terra-teto-chão. De pronto, a angústia da perda se fez tão forte, pois das partituras lhe sobrara apenas o tom dobrado em D.

Era uma sexta-feira, 29 de abril de 69, ano de nosso senhor. A mão de sulcos velhos, lhe enroscava os cabelos e tez, como que num agrado lhe pudesse em termo, fazer acordar sem de todo despertar. O amigo ao lado dormia e a voz a inquerir, que dele já não era, em doce apelo acerca do agrado ao show, que de fato tinha sido, mas que agora era um balet sem música num salão de veludo. Quisera estar em Paris, compondo a nota belle elegant para bordéis de neon. Acaso, sorriu, lhe indicaram o vago portão de luzeiro carmim que recebia bem a quantia que podia pagar. Mas que tudo não lhe fazia mais os bugalhos da inversa vida, pois com boa sorte e metade do filme se podia tocar belos tangos e quem sabe à mulher de fartos seios que a seu lado sorria, compor uma cantata e havia pra isso de tudo o seu tempo. A facada aos treze, que na chegada à cidade, da fuga ao campo desatada daria um tom baião de morte e o beijo roubado à Rosalba, naquela tarde de fim de ano faria tremer as cordas na balada doce deixada na língua.


"Ahh..." se lembrando dos tons e de uns sopros inquietos, também um pouco. Levantou-se da mesma, beijou a mulher das mãos, e ao ébrio amigo lhe deu o ombro. Caminho em chuva, quase seis, ainda noite, cantarolou em pedaços, as faixas da trilha em mente. Tentava e tentava, de olhos quase-fechando, colar os cacos da vida em disco. Julgou serem ruídos de LP os buracos que não colavam e postulou ser assim mesmo tais coisas por aqui na cidade. Mal sabia o Ernesto, que por todos lhe chamavam Nesto, serem os buracos o fundo e a orquestra fortuna que a cada batida entoavam os rondós e a tragédia de seus dias. Mal sabiam eles, pensou o Nesto, que meus olhos, que de resto já enxergam a música, repuxaram meu ouvido. E neles, mal o sabem, já posso ouvir pedaços do aceno ao porvir, que ao longe sussurram não ser mais, eu nesse assombro, um vazio a cantar "tragedies no more..."

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