★ Flávio Souza Cruz ★

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domingo, maio 25, 2003

[Estou ouvindo: Por Una Cabeza - Various - Nostalgias (02:32)]

Me veio então a palavra na seguinte forma: "Difícil é sempre mais fácil dizer". Há algo trágico no tango sim, mas algo melancolicamente encantador, destes feitiços circulares que nos enebriam numa espécie de tristeza antiga, velha amiga de tempos. Tangos sempre me lembram que gosto de dançar e poetar. Tangos sempre me lembram de me entender como música no mundo, como trilha sonora que insiste em tocar numa vitrola velha. Tanta coisa a dizer e tanta vontade de ficar calado.
Pedro Chosnovsky, 45 anos, comerciante. Assinou os papéis, conferiu de novo cada palavra e teve apenas a dúvida se iria querer receber o boletim de novidades. As duas vias foram entregues à moça de sorriso rosáceo, que lhe entregou um comprovante. O salão estava cheio e as pessoas andavam preocupadas cada uma com seu norte. Imaginou se elas sabiam realmente que norte teriam. Olhou de novo para a moça, que novamente com um leve sorriso abaixou candidamente o rosto em reverência chinesa. Virou-se para a porta de vidro fumê, caminhou. Dezenove passos deveriam dar, mas a cada movimento de suas pernas, cada passo era mais difícil. Os dois primeiros foram de impulso, mas depois cada tentativa de levantar os pés do chão era como uma luta hercúlea. O ritmo do mundo continuava o mesmo. As pessoas andavam normalmente. Não o viam, ou melhor, não ligavam em ver. O esforço se traduzia em dor e suor. Seus músculos fibrilavam, se contorciam fazendo mãos e pés se espalmarem. Virou para trás de novo na tentativa de chamar a moça do balcão. Ela agora atendia uma senhora de sobretudo verde, não tendo olhos para o seu drama. Parou. Respiração ofegante, pulso descontrolado e uma sensação kafkaniana de não se entender. Lembrou-se de novo que deveria chegar ao norte e que a porta estava agora a apenas 3 passos. O ar de fora vinha em breves rajadas a cada pessoa que entrava e saía. Pegou um cigarro, mexeu nos bolsos à procura dos fósforos. Deu conta então que parado conseguia fazer as coisas, que estando parado nada lhe impedia de se movimentar. Os pés não saíam do chão, mas podia virar o tronco, abrir os braços e fazer o que quisesse. Tentou agarrar a primeira pessoa que passasse. Um rapaz foi o primeiro a lhe dizer:
- Pois não?
- Tire-me daqui, por favor. Eu não consigo mais andar!
- E por quê gostaria de andar?
- Ora, por quê? Isso é lá uma pergunta? Eu quero andar! Me tire daqui!
- E se eu lhe tirar daqui, o senhor voltará a andar?
A profusão de perguntas somada à perplexidade inesperada lhe fez terminar a conversa com um "obrigado, me desculpe". O rapaz se foi como os outros, deixando em Chosnovsky uma boca aberta a olhar para dentro. Ele tinha de chegar ainda às 6 para pegar um lugar vazio do outro lado da cidade. Incapaz, no entanto, de dar três passos por conta própria, se ajoelhou no ladrilho de mármore xadrez e se pôs a chorar. Imaginou que se pudesse esticar seu corpo até à fresta da porta, talvez tivesse uma chance. Tentou se ajeitar para o lado procurando o melhor ângulo e começou a se arrastar. seus braços eram entrecortados pelos pés das pessoas. Ao chegar à fresta da luz, sentiu a dor de um sapato a lhe esmagar o dedo. O sangue correra por dentro como flecha, trazendo uma onda inflamada de dor. Sentou-se. Desistiu de tudo e todos, fechou os olhos. Achou melhor deixar o tempo passar. Viu as horas, as pessoas, novamente as horas e não mais pessoas. A luz da porta se foi, trocada por uma lâmpada perdurada por horas. Depois o nada e mais ninguém. A moça do balcão também se fora. Rodeou um dia e por fim viu surgir de novo todo o ritmo, toda a folie da véspera. Volteou os olhos e lá estava ela, a moça de sorriso rosáceo agora lhe sacudia os braços. "O quê?", gritou.
- Seus sapatos, senhor!
- Heim? O quê?
- Seus sapatos! O senhor não vai desamarrá-los?

sexta-feira, maio 23, 2003

"O vinho é composto de humor líquido e luz"
Galileu Galilei

segunda-feira, maio 19, 2003

Enquanto alinhava os distorcidos fios da sombrancelha, lhe ocorreu a idéia de que seu dedo e mão estavam próximos de seus olhos. Dava para ver a luz embaçada entre os dedos e o anel que brilhava dourado, destacando-se no conjunto. O dedo médio e o indicador roçavam os fios como num cafuné desinteresado. Passou então a abrir os dedos e a fechar, cada um como se fosse um take de cinema. A brincadeira fazia ver as coisas diferentes e toda a velha conhecida prateleira de objetos agora era um mundo. Escalou livros, deslizou por lapiseiras, dançou no velho quadro, quase caindo pelas curvas da mesa. Pela porta da sala, inclinada agora em setenta graus, viu um fio correndo como rio pelo mapa carmim da parede. A parede dava para o corredor que dava para... lembrar do relógio rodopiando ponteiros a lhe esperar. De súbito lhe retornou a angústia de sempre, matizada agora com um apertar de olhos e contorcer da barriga. O tempo era dinheiro e o tempo naquela eternidade de novos olhares era nada. Rotulou tudo aquilo como inútil e se dispôs a contar quantos segundos perdera na sua existência. Tantas coisas poderia ter feito naquele momento imperfeito. De tudo lembrou do sol e suas vizinhas estrelas. Alpha Centauri, Sirius, Alpha, Teta, Gama... das estrelas passou ao infinito. Rodopiou a cadeira e se sentiu imerso no eterno, frágil como não podia deixar de ser. Sentiu então a inutilidade de tudo e o vazio de estar ali a roubar segundos de si mesmo. Segurou nas mãos o ordenado relógio, puxou 5 minutos do ponteiro para trás. Voltou para cadeira e ficou a imaginar um jeito de dizer a si mesmo que tudo o que de fato tinha sentido e de fato o agradava, não tinha utilidade neste mundo. Abençoadamente dormiu, lembrando por último que quando criança gabava-se sempre de dizer aos coleguinhas de sala que o infinito, por ter início, era sempre menor que o eterno.

domingo, maio 18, 2003

O livro de hoje é uma coletânea com os trabalhos de João Gilberto Noll, editada pela Companhia das Letras. Ela é composta por 'O cego e a dançarina', coletânea de 24 contos publicada em 1980 pela Civilização Brasileira, além de alguns outros contos publicados esparsamente e por 7 romances, sendo eles 'A fúria do corpo'(1981, Record), 'Bandoleiros' (1985, Nova Fronteira), 'Rastros do verão' (1986, L&PM), 'Hotel Atlântico' (1989, Rocco), 'O quieto animal da esquina' (1991, Rocco), 'Harmada' (1993, Companhia das Letras) e 'A céu aberto' (1996, Companhia das Letras). Eu conheci o Noll a partir do programa de entrevistas do Pedro Bial na Globo News. Ou melhor dizendo, eu ainda estou conhecendo o Noll... o que me leva a refletir sobre o tanto de clássicos que lemos, sem nos darmos o tempo de ler os que estão conquistando espaço e os que estão ainda por conquistar. Isso sem falar naqueles que se encontram num tal lugar enaltecido pelo acaso farto de horas, pessoas e lugares certos em momentos "certos?". Hoje eu li um poema no Suplemento Literário da Imprensa Oficial. Estava na primeira página e era uma frase apenas estruturada em linhas como um poema. Era um frase, mas estava vestida de poema. A frase era até legal, mas não era um poema. Alguém certamente, além do autor, pensou diferente de mim e o colocou lá na primeira página. Uma vez, conversando com o saudoso historiador Francisco Iglésias, poucos anos antes de sua morte, recebi a seguinte pérola: "eu ainda não terminei de ler Proust, devo eu perder meu tempo com Sangue de Coca Cola?" Não vou me enrolar neste debate sobre sexo de anjos, pois na verdade o que eu acho é que devemos encontrar algum ponto de esquilíbro, mesmo que errático, mesmo que em mutação, na leitura nossa de cada dia [nos dai hoje]. Anyways...

Estou lendo no momento o romance Hotel Atlântico da coletânea, do qual eu tiro este pequeno trecho:

"Eu ia andando pela rua com os olhos postos em frente, fixos. Ouvia de vez em quando um 'Deus seja Louvado', um cumprimento, não pude deixar de perceber o aceno tímido de uma garotinha. A nada eu respondia. Eu era uma figura desconhecida com o seu bordão, ninguém chegava muito perto. Para alguns talvez eu fosse um homem em constante contato com esferas sagradas, eu não via o mundo visível."


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