★ Flávio Souza Cruz ★

domingo, maio 25, 2003

Pedro Chosnovsky, 45 anos, comerciante. Assinou os papéis, conferiu de novo cada palavra e teve apenas a dúvida se iria querer receber o boletim de novidades. As duas vias foram entregues à moça de sorriso rosáceo, que lhe entregou um comprovante. O salão estava cheio e as pessoas andavam preocupadas cada uma com seu norte. Imaginou se elas sabiam realmente que norte teriam. Olhou de novo para a moça, que novamente com um leve sorriso abaixou candidamente o rosto em reverência chinesa. Virou-se para a porta de vidro fumê, caminhou. Dezenove passos deveriam dar, mas a cada movimento de suas pernas, cada passo era mais difícil. Os dois primeiros foram de impulso, mas depois cada tentativa de levantar os pés do chão era como uma luta hercúlea. O ritmo do mundo continuava o mesmo. As pessoas andavam normalmente. Não o viam, ou melhor, não ligavam em ver. O esforço se traduzia em dor e suor. Seus músculos fibrilavam, se contorciam fazendo mãos e pés se espalmarem. Virou para trás de novo na tentativa de chamar a moça do balcão. Ela agora atendia uma senhora de sobretudo verde, não tendo olhos para o seu drama. Parou. Respiração ofegante, pulso descontrolado e uma sensação kafkaniana de não se entender. Lembrou-se de novo que deveria chegar ao norte e que a porta estava agora a apenas 3 passos. O ar de fora vinha em breves rajadas a cada pessoa que entrava e saía. Pegou um cigarro, mexeu nos bolsos à procura dos fósforos. Deu conta então que parado conseguia fazer as coisas, que estando parado nada lhe impedia de se movimentar. Os pés não saíam do chão, mas podia virar o tronco, abrir os braços e fazer o que quisesse. Tentou agarrar a primeira pessoa que passasse. Um rapaz foi o primeiro a lhe dizer:
- Pois não?
- Tire-me daqui, por favor. Eu não consigo mais andar!
- E por quê gostaria de andar?
- Ora, por quê? Isso é lá uma pergunta? Eu quero andar! Me tire daqui!
- E se eu lhe tirar daqui, o senhor voltará a andar?
A profusão de perguntas somada à perplexidade inesperada lhe fez terminar a conversa com um "obrigado, me desculpe". O rapaz se foi como os outros, deixando em Chosnovsky uma boca aberta a olhar para dentro. Ele tinha de chegar ainda às 6 para pegar um lugar vazio do outro lado da cidade. Incapaz, no entanto, de dar três passos por conta própria, se ajoelhou no ladrilho de mármore xadrez e se pôs a chorar. Imaginou que se pudesse esticar seu corpo até à fresta da porta, talvez tivesse uma chance. Tentou se ajeitar para o lado procurando o melhor ângulo e começou a se arrastar. seus braços eram entrecortados pelos pés das pessoas. Ao chegar à fresta da luz, sentiu a dor de um sapato a lhe esmagar o dedo. O sangue correra por dentro como flecha, trazendo uma onda inflamada de dor. Sentou-se. Desistiu de tudo e todos, fechou os olhos. Achou melhor deixar o tempo passar. Viu as horas, as pessoas, novamente as horas e não mais pessoas. A luz da porta se foi, trocada por uma lâmpada perdurada por horas. Depois o nada e mais ninguém. A moça do balcão também se fora. Rodeou um dia e por fim viu surgir de novo todo o ritmo, toda a folie da véspera. Volteou os olhos e lá estava ela, a moça de sorriso rosáceo agora lhe sacudia os braços. "O quê?", gritou.
- Seus sapatos, senhor!
- Heim? O quê?
- Seus sapatos! O senhor não vai desamarrá-los?

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