A copa da árvore compunha a parte das minhas membranas entremeadas por um sol reticulado de nuvens. Cerrei os olhos em busca da sombra dos meus causos. Respiração e olhar se inspiraram num tragar de lembranças voltadas para o chão. Levantei-me e olhei de volta o raiar púrpuro da tarde que se despedia. A vida continua seu ritmo ininterrupto de cores, enquanto as lembranças tinham gosto de sépia. Olhei a curvatura brilhante da fruta nas minhas mãos e dela se desfez em pedaços agora rasgados por meus dentes. A boca rumina pedaços de idéias a cada volta. Você está lá entremeada por desejos, tijolos, gramados e sorrisos. E tudo então se volta como ritmo cadenciado pelo movimento de cada parte da face. E cada parte é dor lembrança e pétala jogada. Ao fundo, o barulho das folhas revoadas se encapotando pra noite, ao dentro Renato canta uma mistura de Legião e versos meus. Os dedos se tocam como se quisessem tirar do outro um roteiro de trabalho. A mesa está posta num xadrez e prato só. Volteio de novo o corpo e o horizonte lá me espera a interrogar sobre o dia. Como a prestar contas, os braços e mãos espalmadas a altura do queixo se entregam à disposição de um tempo que se abre, negando a traição pelo que se foi. Eu me desfiz do dia, confessei. Me refiz à tarde, e à noite, beijo seu, me molhar de vida é o que peço.
Voltei ao quarto das luzes acesas, rezei três palavras com a língua e lábios se fechando. Cada minuto se eterniza numa ópera bufa incansável por não se terminar. De me cansar das horas internas fui contar os ponteiros da lua nascente. Imaginei arte pop de um The Cure misturado a Pumpkins desenhando babados e bocas vermelhas no amanteigado seio do céu. E me imaginava em assombro por haver tudo ali. E por estar tudo ali, a caixa de lembranças carregadas no pulsar dos meus ossos e a caixa de esperanças de um céu desenhado por música. Me entendi como céu, me vi como tinta pintada no céu daqueles que perdi. As cores rosnavam como feras, deslizavam como anjos e inchavam em orgasmo. Abri os olhos e o azul negro agora era tudo. A primeira estrela aparece, mais uma e outra mais. Um carro passa logo abaixo na estrada. Olho para a mesa, volto a comer. Garfos e facas retrançam uma velha ladainha cantada por velhas a me ensinar sobre sacos que ficavam em pé. Uma mão toca meu ombro, minha pele instilada por cheiros a pressentir. Está na hora, Carla Maria, me diz a voz. A porta se fecha e fico a contar nas linhas da mão se a sexta hora da lua já havia apontado nos olhos dela, naqueles que um dia me visitaram como boca de pintada lua. Fechei os olhos e o púrpuro raiar agora é tudo.
quarta-feira, abril 30, 2003
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